Victoria Torres Campbell
Bacharela em Relações Internacionais pela UFRRJ e Mestranda de Relações Internacionais na PUC-RIO
O trabalho está baseado no TCC orientado pelo professor Daniel Sebástian Henao.
A Intervenção Federal no Rio de Janeiro revela a persistência da matriz colonial, que impacta de maneira diferenciada corpos periféricos e não periféricos em uma realidade violenta. Essa violência é perpetuada por táticas de controle social, como a militarização das forças de segurança.
Palavras-chave: Colonialidade; Militarização; Rio de Janeiro.
A estrutura colonial estabelecida no Brasil gerou impactos sociais e políticos que reverberam até os dias de hoje, especialmente nos territórios periféricos, que são tratados como espaços de exceção (Mallmann; Rodrigues, 2019). A matriz de poder colonial persiste, e suas sequelas são visíveis, com os sujeitos explorados, pobres e negros, sendo tratados como ameaças à segurança e tendo seus direitos violados (Mignolo, 2000). Grosfoguel observa que a perspectiva colonial via as zonas periféricas como problemáticas, justificando intervenções políticas e militares, como as operações no Rio de Janeiro, sob a premissa de uma “missão civilizadora” (Grosfoguel, 2008). Hoje, esses indivíduos são apontados como inimigos e ameaças, perpetuando um ciclo de exploração e dominação.
Os limites entre guerra e paz tornaram-se indefinidos, impossibilitando a determinação objetiva de quando uma começa e a outra termina (Jabri, 2007). De acordo com Souza e Serra (2020), a guerra se apresenta como um grande empreendimento de segurança, enquanto a paz se transformou em pretexto para intervenção e ocupação armada.
A intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018 exemplifica a dificuldade de distinguir claramente os momentos de paz. A presença constante de armas e o controle social estabelecido pelo general Braga Netto dividem o tecido social entre “nós” e “eles”, onde os corpos periféricos são identificados como inimigos (Cruz, 2017; Leite, 2012). A cidade se torna palco de uma guerra assimétrica, com táticas de combate usadas para lidar com ameaças internas através de ocupação territorial, eliminação e controle dos inimigos marginalizados (Souza; Serra, 2020).
O Estado, assim como grupos criminosos, utiliza métodos de controle social violento, como cerco, ocupação, invasão e intervenção nos morros e favelas (Machado da Silva, 2008). Essas táticas baseiam-se na criação de perfis que atribuem comportamentos nocivos e associados à violência aos corpos periféricos, militarizando a segurança pública. Graham (2017) destaca que essa militarização normaliza padrões militares de pensamento, visando controlar o tecido social e disciplinar violentamente corpos, espaços e identidades, observando que “a eliminação de pessoas e locais é um traço extremamente comum, muitas vezes ignorado, em áreas urbanas do Sul global”.
No pós-Guerra Fria, o debate sobre as atividades militares e policiais destacou o uso das forças armadas em espaços tradicionalmente policiais. Pesquisadores sul-americanos descrevem esse processo como a indistinção entre defesa e segurança pública (Saint Pierre, 2011), enquanto a bibliografia estadunidense e europeia vê isso como uma confusão entre segurança interna e internacional. Na América do Sul, esse debate está amplamente relacionado ao crime organizado transnacional, especialmente ao tráfico de drogas ilícitas e seu impacto na violência urbana (Rodrigues, 2012).
Huntington (1991) argumenta que assegurar o controle civil sobre as forças armadas torna a profissão militar “politicamente estéril”. Com a nova estrutura internacional pós-Guerra Fria e a ausência da ameaça comunista, o envolvimento das Forças Armadas tornou-se consequência de uma retórica criada e difundida tanto por atores políticos quanto pela sociedade civil, especialmente pela grande imprensa: a lógica da guerra. A sociedade, fragilizada pelo aumento da violência no Rio de Janeiro, assimila a reprodução de vocabulários militares como “guerra”, “inimigo”, “combate” e “conquista” como parte da realidade cotidiana, levando a operações militarizadas vistas como necessárias contra o “perigo” das facções criminosas (Carvalho, 2021).
Ao apontar os corpos marginalizados como desafios à ordem, essas operações legitimam ações violentas das forças de segurança. Em espaços de exceção, característicos de cenários de guerra, a violência é admitida contra os moradores das periferias. Sultan Barakat (2002) destaca essa lógica da guerra: “hoje em dia, as guerras são travadas não em trincheiras e campos de batalha, mas sim em salas de estar, escolas e supermercados”. Isso reflete uma realidade onde o inimigo não são mais tropas uniformizadas, mas populações inteiras vistas como criminosas ou ameaças.
A estrutura da segurança pública e o aparato policial no Rio de Janeiro são estabelecidos a partir de uma organização militarizada, resultante das repercussões coloniais que influenciam as dinâmicas de controle social sobre os corpos periféricos. Apesar das renovações e criações de novos corpos policiais, essa configuração militar nunca foi desfeita. O processo de militarização das forças de segurança pública intensificou-se especialmente após o Golpe Militar de 1964 (Grotti; Bordin, 2020).
Durante a ditadura militar, a Polícia Civil assumiu a função de investigar crimes e conduzir inquéritos policiais, enquanto a Polícia Militar ficou encarregada do policiamento ostensivo. Essa estrutura foi mantida mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, preservando o modelo estadual com as duas polícias. A transição da ditadura militar para o regime democrático não trouxe a desmilitarização da polícia. Portanto, a tradição autoritária permaneceu mesmo após o marco formal democrático, pois a redemocratização não resultou na separação clara entre funções militares e civis (Grotti; Bordin, 2020). Assim, é possível afirmar que o período da ditadura militar moldou a base da nossa segurança pública atual.
Considerando a não desmilitarização da polícia na transição da ditadura militar e os frequentes atos interventivos no Rio de Janeiro, a Intervenção Federal de 2018 não foi um fenômeno isolado, mas o auge de um processo de militarização contínua. O governo estadual do Rio de Janeiro sempre adotou uma lógica militarista, baseada na criação de um inimigo, contribuindo para uma dialética de criminalização da pobreza (Batista, 2002). Na ótica militarista, os territórios periféricos são vistos como áreas hostis, e seus moradores são retratados como ameaças.
Analisando as ações militares no Rio de Janeiro após a Constituição de 1988, percebe-se um processo de militarização que transcende a segurança pública, atingindo outras políticas públicas civis e resultando na militarização do cotidiano como estratégia política (Camargo; Bordin; Souza, 2018). A criação desse inimigo, frequentemente ligada a questões de raça e classe, permite imaginar certos grupos como responsáveis pela ruína da sociedade (Grotti; Bordin, 2020). No contexto da intervenção, a figura do traficante é determinada como o novo “inimigo interno”, conferindo um novo propósito às Forças Armadas.
Os índices de criminalidade usados para justificar a Intervenção Federal de 2018 não se sustentam quando comparados com outras regiões e períodos. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio de Janeiro apresentava índices de criminalidade menores que outros estados, como Sergipe, que tinha uma taxa de 60 homicídios por 100 mil habitantes, comparada a 37,6 no Rio de Janeiro em 2017. Isso sugere que a intervenção pode ter sido motivada por interesses além da manutenção da ordem pública (Observatório da Intervenção, 2019).
A Intervenção Federal no Rio de Janeiro em 2018 deve ser compreendida dentro de um contexto histórico de militarização contínua e políticas de segurança pública que visam principalmente os territórios periféricos e suas populações. Esta lógica de guerra perpetua a violência e a exclusão, refletindo uma política que prioriza o controle e a dominação sobre a proteção e a inclusão social.
O uso da figura do traficante como inimigo interno e a militarização como solução para a criminalidade refletem uma lógica que perpetua a violência colonial e a exclusão de indivíduos marginalizados por questões de raça e classe. Incentivar o medo, em vez de buscar políticas públicas eficientes, tem sido uma ferramenta de controle social, afetando principalmente os mais pobres e marginalizados. A perpetuação da colonialidade e o tratamento dado às populações periféricas, entendidas como fora do padrão estabelecido pela sociedade, são, na verdade, a norma.
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