Autora: Marcelle Pereira de Oliveira.
Graduada em Relações Internacionais pela UFRRJ e Mestranda em Relações Internacionais do PPGRI/UERJ.
Artigo baseado na monografia intitulada “Análise do Discurso e Relações Internacionais: a formação discursiva do Estado no trabalho de David Campbell” orientada pela professora Ana Saggioro Garcia e defendida em agosto de 2024.
Resumo:
O artigo pretende entender, através da análise de política externa proposta por David Campbell, como o discurso funciona como ferramenta de articulação e construção da identidade do Estado. Influenciada pela análise do discurso foucaultiana, interpreta-se que a identidade do Estado é construída discursivamente através de mecanismos de diferenciação.
Palavras-chaves: identidade, discurso, política externa.
Introdução
Ao longo do desenvolvimento da Disciplina de Relações Internacionais, os pressupostos teóricos mais repercutidos baseiam-se no positivismo, uma abordagem importada das ciências exatas e biológicas na qual a análise sobre o mundo social se baseia na busca por uma verdade absoluta que pode ser observada imparcialmente. Conforme Messari e Nogueira (2015, p.189), as teorias positivistas de RI “partem de pressupostos (por exemplo, sobre a natureza humana) que são colocados fora de qualquer debate e tratados como dados”. Nesse sentido, ocorre um afastamento entre sujeito e objeto de estudo onde a imparcialidade da análise independe de sua origem.
Por outro lado, os críticos dessa abordagem; que, nas RI começam a ganhar destaque a partir do Terceiro Debate; defendem que objeto e pesquisador são inseparáveis, no sentido de que a formulação do pensamento está essencialmente atrelada ao seu contexto de produção. Sendo assim, a lógica pós-positivista defende que toda argumentação acerca da realidade parte de uma interpretação que está sujeita às variáveis de sua formulação. Ou seja, “todo processo de análise da realidade social envolve alguma forma de interpretação. Por sua vez, as diferentes interpretações sobre a natureza e o significado do que vemos estão fundamentadas em pressupostos que devem estar sempre sujeitos à discussão.” (MESSARI E NOGUEIRA, 2005, p.189)
A formação discursiva do Estado tem sido um tema central nos estudos pós-positivistas de RI. De acordo com essa abordagem, a interpretação da realidade construída através de diferentes interpretações desafia a ideia do realismo epistêmico de que o Estado; figura recorrente nas discussões da disciplina; seria uma entidade fixa e objetiva. A intenção não é negar essa premissa, mas questionar seu status como verdade e sua formulação como objetiva. Dentre os trabalhos críticos ao positivismo nas Relações Internacionais, destaca-se o trabalho de David Campbell, cuja pesquisa fortemente influenciada pela análise do discurso foucaultiana propõe uma relação entre discurso, identidade nacional e política externa.
Foucault e RI: a influência da análise do discurso para a abordagem pós-estruturalista de David Campbell
A análise do discurso proposta por Foucault, aqui analisada através da transcrição da Aula Inaugural do College de France, transcrita e publicada sob o título “A Ordem do Discurso (FOUCAULT, 1996), se baseia da ideia do sujeito lacaniano transpassado pelas relações de poder contidas no discurso. Tal conceito trata de um sujeito cuja existência ontológica está fora de si, com sua significância estando subordinada a algo que está para além de si próprio (Lacan, 2002). Por conseguinte, pode-se dizer que “o sujeito social que produz um enunciado não é uma entidade que existe fora e independentemente do discurso, como a origem do enunciado (seu autor/sua autora), mas é, ao contrário, uma função do próprio enunciado” (FAIRCLOUGH, 2008 p. 68).
De maneira análoga, funciona a construção da identidade do Estado na lógica de Campbell. Em “Writing Security: United States Foreign Policy and the Politics of Identity”(1992)”, a argumentação feita por Campbell se baseia na ideia de que a identidade nacional é composta através do que ele chama de postulado da diferença. Portanto, para definir o que está contido no Estado, precisa-se primeiro definir o que está fora dele. Em outras palavras, a identidade do Estado é colocada como produto de diversos padrões de exclusão repetidos ao longo do tempo, de maneira que esta identidade está sempre em processo de construção.
Outro reflexo de Foucault no pensamento de Campbell é a ideia de que a realidade somente pode ser lida através do discurso. É interessante notar que não é a negada a existência da realidade material, muito pelo contrário. A proposição é de que, ainda que essa realidade exista, ela só pode ser interpretada através da linguagem, ou seja, do discurso. Sendo assim o discurso que Foucault coloca como “uma violência que fazemos às coisas” (FOUCAULT, 1996, p.153) diz respeito à sua capacidade de definir e moldar essa realidade.
De maneira a demonstrar sua tese em prática, Campbell analisa, através da política externa, os escopos identitários dos Estados Unidos e suas relações de diferenciação e exclusão desde o período colonial até o pós-Guerra Fria. Nesse sentido, analisa que uma vez definido um “outro” do qual se diferenciar, o “eu” produz práticas de exclusão para que tal diferenciação seja mantida e, uma vez que o discurso de alteridade do “outro” vigente perca força em meio a sociedade doméstica, outro “outro” toma seu lugar. Portanto, estando o “eu” sujeito às características de um “outro” que não é fixo, logo, este “eu” também permanece em processo de mutação. Conforme o autor: “Estados nunca são entidades completas,[…] estão sempre em um processo de transformação.”(CAMPBELL, 1992, p.11)
Considerações Finais
A análise da formação do Estado através do discurso promovida por Campbell demonstra a articulação entre a Análise do Discurso e as Relações Internacionais, de maneira a questionar os fundamentos do realismo epistêmico consolidados no mainstream da disciplina. Além do mais, permite refletir a articulação entre política externa e identidade, de modo a articular a correlação entre ambas através do postulado de alteridade.
Ademais, a influência de Foucault possibilita aprofundar, de maneira crítica, a análise de como o discurso não é refletor de uma realidade política, mas o próprio mecanismo que a produz. Nas RI, isso implica que as relações internacionais; como objeto de estudo; não podem ser entendidas isoladamente de suas construções discursivas e dos contextos que as possibilitaram. A perspectiva pós-estruturalista destaca a importância de analisar criticamente os discursos que fundamentam as políticas internacionais e moldam percepções sobre segurança, soberania e identidade nacional. Dessa forma, a Análise do Discurso atrelada às Relações Internacionais se apresenta como uma ferramenta essencial para desnaturalizar narrativas dominantes e compreender as relações de poder que estruturam o cenário global.
Diante dessas reflexões, este artigo reafirma a relevância da abordagem de David Campbell para os estudos contemporâneos de Relações Internacionais ao reconhecer que o discurso não é apenas um meio de comunicação, mas um elemento constitutivo da realidade política, abre-se espaço para novas investigações sobre como identidades estatais são continuamente construídas e negociadas no contexto internacional. Assim, futuros estudos podem aprofundar a análise sobre a interação entre discurso, poder e políticas externas, contribuindo para uma compreensão mais crítica e complexa das dinâmicas globais.
Referências:
Campbell, David. Writing Security: United States Foreign Policy and the Politics of Identity. University of Minnesota Press, 1992.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora UnB, 2008.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola. 1996.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: O avesso da Psicanálise, 1969-1970. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002
MESSARI, Nizer; NOGUEIRA, João P. Teoria das Relações Internacionais – Correntes e Debates. Rio de Janeiro: GEN Atlas, 2005.